domingo, 27 de junho de 2010

Chico Xavier e a Bhagavad Gita: a disciplina do coração

Vi outro dia num site Espírita a seguinte recomendação: “você deve seguir sempre o seu coração”. O site também sugeria que o conceito de espiritualidade iria, no futuro, ocupar o espaço hoje reservado à ‘religião’ do homem dividido: “Um dia os homens não terão mais rótulos religiosos. Ninguém se dirá católico, protestante, hindu, (…) ou qualquer outra coisa, porque a única identificação que trará consigo será o amor.”. Isto me fez pensar na obra de Chico Xavier e como ela se relaciona com a antiga disciplina do coração, fundada no amor, conforme a exposição de Krishna à Arjuna na Bhagavad Gita. Os romances de Chico Xavier trazem ao ocidente esse aprofundamento sobre a disciplina introduzida por Cristo. A sua obra retrata a relação do ser humano com a divindade que reside no coração e a sua lei, mantendo-se fiel à simplicidade do Sermão de Cristo e, ao mesmo tempo, tratando de alguns detalhes mais técnicos que só aparecem na Bhagavad Gita.

Chico Xavier escreve de forma livre. Traz para dentro do corpo doutrinário do Espiritismo esta compreensão de movimento evolutivo, que torna o Espírita menos dogmático, quando comparado aos membros de outras religiões ocidentais. O Espírita tem por princípio não julgar as diferentes manifestações filosóficas e religiosas. Costuma dar exemplo de compreensão e tolerância. Tem consciência de que não é a religião, mas o esforço em sublimar as más inclinações que conduz à salvação. É o Espírita quem entende o Sermão da Montanha de Jesus como esse convite para vencer a si mesmo.

Desse modo, a doutrina Espírita firma-se no Brasil resgatando o antigo entendimento do pensamento oriental de que tudo, desde a superestrutura dos astros à infra-estrutura subatômica, está mergulhado na substância viva da Mente de Deus [“Fluido Cósmico Universal”, LE, Q. 26]. No livro Nos Domínios da mediunidade, que discutimos nas próximas seções, Chico Xavier vale-se do Espírito Albério para tratar deste assunto em diversas passagens, como a que se segue: “Filhos do Criador, d’Ele herdamos a faculdade de criar e desenvolver, nutrir e transformar” (p. 16). Pode-se argumentar que o Espiritismo surge para aprofundar a experiência religiosa ocidental [LE, Q. 1010], possibilitando a associação do Cristo e do Criador na figura do ser que a literatura recente designa como o ‘Cristo planetário’. Nas escrituras sagradas da Índia, o termo sânscrito que designa a este ser é ‘Ishvara’, que representa os aspectos da divindade relacionados com as funções de criação, desenvolvimento e destruição (ou re-assimilação) do universo [LE, Q. 68-70].

Além disto, ao reconhecer o antigo conceito de karma, oriundo da literatura sânscrita da Índia, a literatura Espírita esbarra também no conceito designado pelo seu termo correlato, dharma. Quando Chico Xavier afirma em vários momentos de sua obra que cada alma se alinha em seu mundo ‘kármico’ em conformidade com o seu ‘hálito’ mental, o faz em consonância com o que antes já haviam feito os indianos, ou seja, baseando-se em certas ‘leis de equilíbrio’, desconhecidas, até então, do pensamento da tradição judaico-cristã, embora sugeridas pelo próprio Cristo. Tais leis, na Índia, designam-se pelo nome geral de ‘dharma’. De acordo com a literatura dos Vedas e Upanishades, karma e dharma são conceitos interdependentes, de modo que o conhecimento de um implica no conhecimento do outro. Pode-se dizer, portanto, que por intermédio de André Luiz, o ocidente tem acesso ao antigo conceito que o oriente designa pelo termo ‘dharma’, recuperando e atualizando o seu sentido, em parte desgastado pelo tempo, em função do mau uso.

Desde os primórdios da cultura védica os conceitos de karma e dharma representam os fundamentos onde se assentam os sistemas que buscam explicar como os seres viventes se desenvolvem dentro do campo material. A literatura sânscrita refere-se à esta adequação da ação humana (karma) aos princípios holísticos que regem o universo (dharma) como ‘samsara vyavasya’, literalmente, ‘o modo de funcionar no mundo’. O texto de André Luiz sugere esta mesma relação já em seu início, quando o Espírito Albério ensina: “agimos e reagimos uns sobre os outros, através da energia mental em que nos renovamos constantemente, criando, alimentando e destruindo formas e situações, paisagens e coisas, na estruturação dos nossos destinos.” (p. 16-17).

Quando Herculano Pires introduz na doutrina Espírita o termo sânscrito ‘karma’, que sequer fazia parte do vocabulário de Kardec, possibilita um melhor entendimento das leis deste funcionamento no mundo (leis de ação e reação) e inaugura um novo período dentro do espiritismo. A partir daí a teoria reencarnacionista e as práticas de mediunidade foram impondo-se de tal modo que, nos dias de hoje, ninguém de bom-senso diria que um homem como Chico Xavier foi um herege, ou que se desviou do Evangelho.

O fato é que nunca nos foi muito estranha a idéia de que somos todos dotados de certa mediunidade natural, por onde recebemos as influências que nos estimulam em nossas experiências cotidianas. As questões em torno da mediunidade já estavam presentes no Brasil antes mesmo da chegada da doutrina Espírita. E mesmo a definição mais restrita, conforme proposta por Kardec, de que médium é todo aquele que sente a presença ostensiva dos Espíritos, servindo de ponte entre estes dois mundos, não é muito diferente do que por aqui já se praticava. Desse modo, o kardecismo que fora impensável para a conservadora Europa, viabiliza-se no Brasil de forma bastante natural, tendo como base de sustentação as obras de espíritas como Chico Xavier.

Não há hierarquia dentro do Movimento Espírita Brasileiro. Chico Xavier não representa uma autoritária figura central, pelo contrário, representa o resgate da proposta original do Sermão da Montanha, onde a fonte de autoridade, do mesmo modo que na Bhagavad Gita, emana do coração. Desse modo, ao aceitar o Universo como a exteriorização do Pensamento Divino [LE, Q. 38 e A Gênese, Cap. VI], o Espírita possibilita o estabelecimento de um rico diálogo filosófico com o oriente [ver, por exemplo, O que é o Espiritismo?, de Kardec], pois considera Paraíso e Inferno [CI, Cap.III e IV], Adão e Eva [LE, Q. 50-51 e 59] e outros temas bíblicos como meras metáforas.

Nem sempre, entretanto, é simples identificar o que emana do coração. Se Gandhi, por exemplo, afirma ter realizado tudo o que realizou inspirado no ensinamento de Krishna na Gita para seguir a voz do coração, conta a história que o assassino de Gandhi, também dizia estar seguindo o seu coração. Daí, em suma, a importância da obra de Chico Xavier, pois sinaliza para esta distinção.

Continua…

*Rubens Turci é doutor em Filosofia (UFRJ) e em Estudos Religiosos (McMaster University) e pesquisador do Laboratório de Estudos da Índia e Ásia do Sul (LEIAS) da UFRJ.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Bons e maus pensamentos

Estudando o assunto relacionado com a influência oculta dos Espíritos em nossos pensamentos e atos, na questão 467 de O Livro dos Espíritos (Ed. FEB), Allan Kardec pergunta: Pode o homem eximir-se da influência dos Espíritos que procuram arrastá-lo ao mal ? E os Espíritos superiores respondem: “Pode, visto que tais Espíritos só se apegam aos que, pelos seus desejos, os chamam, ou aos que, pelos seus pensamentos, os atraem”.

Em seguida, na questão 469, indaga: Por que meio podemos neutralizar a influência dos maus Espíritos ?, recebendo a seguinte resposta: “ Praticando o bem e pondo em Deus toda a vossa confiança, repelireis a influência dos Espíritos inferiores e aniquilareis o império que desejem ter sobre vós. Guardai-vos de atender às sugestões dos Espíritos que vos suscitam maus pensamentos, que sopram a discórdia entre vós outros e que vos insuflam as paixões más. (...)”.

Observa-se, com base neste diálogo de Allan Karde com os Espíritos superiores, que a causa dos problemas decorrentes da influência dos Espíritos em nossas vidas está em nós mesmos. E a solução desses problemas, também. Depende, apenas, do pensamento correto e da atitude adequada que nos cabe adotar.

Quando soubermos direcionar o nosso pensamento sempre no sentido da prática do bem, cultivando permanentemente a fraternidade, o amor ao próximo, o respeito ao nosso semelhante e o propósito sincero de nos aprimorar cada vez mais, intelectual e moralmente, estaremos – pela lei da afinidade que rege o relacionamento entre os Espíritos encarnados e desencarnados -, atraindo a presença dos Espíritos superiores e bons e afastando os Espírios inferiores e maus.

É exatamente em razão desta realidade que Jesus asseverou em seu Evangelho: “Vigiai e orai para não cairdes em tentação”. (Marcos, 14:38)

Reformador – Outubro 2008 - Editorial

domingo, 13 de junho de 2010

A doutrinação e seus métodos

Alguns espíritas, diz Herculano Pires, pretendem suprimir a doutrinação, alegando que esta é realizada com mais eficiência pelos bons Espíritos no plano espiritual. Essa é uma prova de ignorância generalizada da Doutrina no próprio meio espírita, pois nela tudo se define em termos de relação e evolução. Os Espíritos sofredores permanecem apegados à matéria e à vida terrena, razão pela qual os Protectores Espirituais têm dificuldade de comunicar-se com eles. O seu envolvimento com os fluidos e as emanações ectoplásmicas próprias da sessão mediúnica é-lhes, portanto, necessário, o que evidencia que a reunião mediúnica e a doutrinação humana dos desencarnados são uma necessidade.
A morte não tem o poder de transformar ninguém. Cada Espírito, ao desencarnar, leva consigo as suas virtudes e defeitos, continuando na vida espiritual a ser o que era quando ligado ao corpo, com os seus vícios e condicionamentos materiais, dos quais se liberta pouco a pouco. Além disso, confundido pelas lições recebidas das religiões tradicionais, o Espírito não encontra no Além aquilo que esperava: nem céu, nem inferno, muito menos o repouso até ao juízo final. Ao contrário, ele encontra a dura realidade espiritual, fundamentada na existência da lei de causa e efeito, onde cada qual se mostra como é, sem disfarces, falsas aparências ou o verniz social.
Doutrinar Espíritos não é, porém, tarefa fácil, pois exige conhecimentos doutrinários bastante desenvolvidos e senso psicológico para que o doutrinador possa captar com rapidez a verdadeira feição moral do caso que defronta e, em consequência, encaminhar a doutrinação no devido rumo. É necessário ainda ao doutrinador possuir paciência e bondade, humildade e tolerância, porque somente com auxílio dessas virtudes poderá enfrentar os casos mais difíceis em que se manifestam Espíritos maldosos, zombeteiros ou empedernidos. A sua eficiência depende sempre da sua humildade, que lhe permite compreender a necessidade de ser auxiliado pelos bons Espíritos. O doutrinador que não compreende esse princípio precisa de doutrinação e esclarecimento, para alijar do seu espírito a vaidade e a pretensão. Reportando-se aos casos em que os Espíritos comunicantes se mostram demasiado renitentes, a ponto de perturbar os trabalhos, sugere Herculano Pires que aí o melhor a fazer é chamar o médium a si mesmo, fazendo-o desligar-se do Espírito perturbador. O episódio servirá ainda para reforçar a autoconfiança do médium, demonstrando-lhe que pode interromper por sua vontade as comunicações perturbadoras. O Espírito geralmente voltará em outras sessões, mas então já tocado pelo efeito da doutrinação e desiludido de sua pretensão de dominar o ambiente.
Hermínio Miranda afirma que, no início, os Espíritos em estado de perturbação não estão em condições psicológicas adequadas à pregação doutrinária. Necessitam, então, de primeiros socorros, de quem os ouça com paciência e tolerância. “A doutrinação virá no momento oportuno e, antes que o doutrinador possa dedicar-se a este aspecto específico, ele deve estar preparado para discutir o problema pessoal do espírito. Diversos autores têm chamado a atenção para os hábitos, os vícios e as práticas que precisam ser erradicados das sessões mediúnicas. Edgard Armond considera absolutamente inconvenientes as atitudes seguintes: exigir o nome do Espírito comunicante; crer cegamente no que diz o Espírito; o misticismo exagerado; Há doutrinadores que entendem que acordar de súbito o Espírito comunicante para a realidade seja um benefício e, por isso, costumam informá-los, abruptamente, que já estão mortos. O resultado dessa atitude é, amiúde, a loucura que se instala nos infelizes que desconheciam a própria morte. Herculano Pires, em apoio a essa ideia, observa que, se o doutrinador disser cruamente a esses Espíritos que eles já morreram, mais assustados e confusos ficarão. Devemos, pois, tratar o Espírito comunicante como se ele estivesse doente e não desencarnado. Mudando a sua situação mental e emocional, em poucos instantes ele mesmo perceberá que já passou pelo transe da morte e que se encontra amparado por familiares e amigos que procuram ajudá-lo. Divaldo Franco concorda: dizer simplesmente que o comunicante já desencarnou, os Guias também poderiam fazê-lo. Deve-se entrar em contacto com a Entidade, participar da sua dor, consolá-la e, na oportunidade que se faça lógica e própria, esclarecer-lhe que já ocorreu o fenómeno da morte...”

Excertos dum texto de Astolfo Olegário de Oliveira Filho (1) e debatido na reunião da AELA, na 3ª feira, dia 8 de Junho de 2010
(1) Director da revista semanal electrónica “O Consolador”(*) e editor do jornal mensal “O Imortal”(*)
(*)Brasil

sábado, 12 de junho de 2010

Corpo mental, uma expressão clínica da mente


Uma hipótese alternativa para o estudo da mente.
Núbor Orlando Facure (*)

O “corpo mental” como expressão clínica da mente.

RESUMO

O autor apresenta o “corpo mental” como uma hipótese alternativa para a abordagem da mente. Na atualidade a mente é vista como um conjunto particular de funções desempenhadas pelo cérebro. Esse modelo parece não dar à mente uma noção compatível com o organismo como um todo.

Usando como método a semiologia neurológica, procuramos demonstrar a existência de um “corpo mental” que se revela em diversas situações clínicas como na histeria, na hipnose, na narcolepsia, no membro fantasma e nas chamadas experiências fora do corpo.

Essa forma de estudar a mente sob a perspectiva de um corpo que se identifica semiologicamente, pode abrir um vasto campo de experimentação, e de interpretação de fenômenos tanto psicológicos como neurológicos.

Termos de indexação: Mente, corpo mental, histeria, hipnose, narcolepsia, membro fantasma, experiências fora do corpo.

INTRODUÇÃO

A matemática nos ensina que os elementos de um conjunto não conseguem explicar a natureza inteira desse conjunto. O conceito do todo escapa ao que cada uma das partes isoladamente possa representar (Bertrand Russell
1,2). Considerando os neurônios cerebrais como elementos de um conjunto que se pressupõe conter a mente, poderemos questionar se será possível uma compreensão completa do conceito de mente baseado nas funções dos neurônios. Essa interrogação nos autoriza, pelo menos teoricamente, colocarmos a mente, como situada, tanto fora quanto dentro do conjunto dos neurônios cerebrais.

Por outro lado, novas teorias (Ilya Prigogine in Del Nero
3), sugerem que “sistemas de alta complexidade” têm capacidade de se auto-organizarem. O sistema nervoso, além da sua estrutura física, pode ser visto como um biossistema altamente complexo, dotado de particularidades e propriedades específicas dos seres vivos. Uma “teoria da mente”4, tida como monista, materialista e “emergentista”, identifica os “estados mentais” como sendo um subconjunto distinto dos “estados cerebrais”, que são claramente de natureza física, e que seriam, por sua vez, um subconjunto de estados do sistema nervoso. Segundo essa teoria, as atividades dos neurônios nas suas trocas eletroquímicas produziriam uma nova qualidade de fenômenos que “emergem” como função mental, semelhante à ordem que resulta nos sistemas de alta complexidade.
As diversas teorias da mente4 disponíveis na atualidade não conseguem, entretanto, passar de hipóteses com boa estruturação teórica, sem que possam dar conta de toda uma série de fenômenos conhecidos que a atividade mental expressa. Nenhuma teoria conseguiu até agora efetuar predições específicas sobre os fenômenos mentais e muito menos nos garantiu a possibilidade de testá-la na clínica ou no laboratório.
OBJETIVO E MÉTODO
É exatamente pela possibilidade de testar a hipótese tanto do ponto de vista clínico como laboratorial, que estou sugerindo o conceito de “corpo mental” em substituição ao de mente. Apresento diversas situações onde a semiologia neurológica pode confirmar essa hipótese como compatível com as expressões clínicas. Nesse trabalho, considero o corpo mental como um modelo que tem uma identidade clínica, que pode ser revelada pelos instrumentos de avaliação que a semiologia neurológica oferece.

MODELOS SEMIOLÓGICOS

Histeria – Pacientes histéricos que apresentam distúrbios sensitivos ou motores revelam um padrão semiológico típico, notando-se, antes de mais nada, que eles não obedecem as distribuições anatômicas adequadas às diversas vias de inervação do sistema nervoso.
Por outro lado, nas lesões orgânicas do cérebro, o mapa das anestesias revela distribuições muito conhecidas dos neurologistas, que aprenderam a constatar os níveis de anestesia metaméricos ou haloméricos e as síndromes chamadas de alternas, caracterizadas pelo comprometimento anestésico na hemiface de um lado e do tronco e membros no hemicorpo contralateral.

Os estudos semiológicos mostram que o paciente histérico faz um padrão de anestesia diferente, comprometendo, às vezes, todo seu corpo; ele não sabe que a inervação sensitiva da face percorre o nervo trigêmeo, enquanto as regiões posteriores do couro cabeludo, na nuca, seguem inervações muito distantes, situadas ao nível da medula cervical. As anestesias nos membros do histérico não poupam nenhuma forma de sensibilidade, havendo comprometimento global das sensibilidades superficiais e profundas. A organização dessa “anatomia” elaborada pelo histérico é produto da concepção mental que ele faz do seu corpo. O histérico se expressa semiologicamente como se possuindo um “corpo” organizado por sua mente e não pelo seu cérebro. Essa atitude é conhecida na história da histeria e, sem dúvida é universal, como se pode ler num dos tratados clássicos da neurologia, o “Sémiologie des affections du système nerveux” de J. Dejerine (1914)
5. Na avaliação semiológica do histérico podemos identificar como ele expressa seu corpo mental.

A paralisia histérica também revela contrastes com a semiologia das síndromes lesionais orgânicas. A flacidez é extravagante, a hipertonia costuma ser difusa em toda musculatura, não respeitando a distribuição entre agonistas e antagonistas que o sistema gama exige. A perna desse paciente oferecerá resistência tanto para ser flexionada como para ser estendida. O hemiplégico ou o paraplégico histérico constrói uma deficiência dentro de um modelo imaginário obedecendo a uma construção mental e não a uma perda de vias nervosas.

Hipnose – indivíduos que assimilam as sugestões que induzem à hipnose podem produzir tanto paralisias como anestesias. A experiência médica, vasta nessa área
6, tem demonstrado que as paralisias e as anestesias seguem o mesmo padrão dos quadros histéricos7,8,9. Em um e outro quadro podemos perceber que o “corpo” construído pelo histérico e pelo hipnotizado tem origem nos seus “modelos mentais” e não obedece a sistematização das vias neurais.

As memórias do hipnotizado – Na experiência comum do transe hipnótico sabemos que, ao despertar, o hipnotizado não retém as lembranças do que ele ouviu ou desempenhou durante o transe. Uma segunda indução, feita logo a seguir, o faz resgatar essas memórias retornando à cena do primeiro transe, sem se dar conta agora do que ouviu ou fez no intervalo entre os dois transes. Essa experiência parece nos revelar dois arquivos distintos de memorização. Eu diria que um deles se localiza no cérebro físico, quando ele está desperto, e outro no corpo mental, quando ele está em transe. Essa situação pode ser comparada ao que fazemos no computador: um arquivo que criamos para determinado texto, não abre o texto de outro. Para que isso aconteça, é preciso copiar e colar um no outro para se proceder a essa leitura. No caso da hipnose, podemos usar a sugestão hipnótica para transferirmos as memórias de um ambiente para outro, o que se consegue com certa facilidade.

Narcolepsia – A narcolepsia é um distúrbio do sono no qual o paciente entra subitamente em um estado de sonolência que ele não consegue controlar. Os episódios se repetem com freqüência incômoda perturbando as atividades diárias do paciente. A duração dos episódios costuma ser variada podendo ser de alguns minutos ou horas. Ao despertar, esses pacientes fazem relatos curiosos. Podem permanecer aparentemente lúcidos durante a sonolência realizando nesse período atividades complexas. Sentem sua saída do corpo físico e convivem com cenários e personagens diversos. Alguns relatam uma experiência atemporal, podem ser testemunhas de episódios passados ou que venham a se confirmar no futuro. De qualquer forma, eles parecem ser possuidores de um corpo com o qual vivenciam suas experiências. Os clássicos da neurologia rotulam esses quadros de alucinações hipnagógicas. Aqui estariam também incluídos os chamados sonhos lúcidos que indivíduos normais relatam. Parece-nos, porém, que na narcolepsia a experiência é mais “consciente” e menos simbólica que as vivências oníricas de todos nós. Não é difícil para esses pacientes descreverem as características físicas e funcionais desse corpo mental que lhes permite transitar pelos seus “sonhos”.

Membro fantasma – amputações quase sempre ocorridas em acidentes violentos podem produzir no paciente a percepção da continuidade da existência do seu membro amputado (amputações em outras partes do corpo como mama, nariz, língua, escroto e pênis, podem produzir sintomas semelhantes ao membro fantasma)
10. Melzack11, 12 acredita na existência, no cérebro, de uma imagem do corpo inteiro numa matriz neural. Ela seria composta por uma rede de interconexões neurais, organizada geneticamente e, a partir de estímulos sensoriais, criando um padrão de identificação do eu que Melzack10 chama de “neuro-assinatura”. Mesmo crianças que nascem sem membros podem revelar a existência dessa matriz corporal11. Em que pese as hipóteses neurofisiológicas que tentam justificar os sintomas do membro fantasma, sua manifestação clínica pode complementar os exemplos de corpo mental que queremos estudar. O membro fantasma dá ao paciente toda sensação de um membro real (sentiment du realité concrète, segundo Lhermitte)10 onde ele sente dor, cócegas, movimentos espontâneos e reações de evitamento como bater em um móvel. Considerando esse membro como parte do corpo mental, veremos que a consciência do paciente não exerce controle sobre suas funções, quer motoras ou sensitivas. Podemos dizer que essa falta de controle é pertinente aos quadros de histeria e hipnose que anotamos.

Uma série de outros fenômenos clínicos parece sugerir a existência dessa representação corporificada da mente que estamos analisando. A construção da imagem corporal e as síndromes de negligência são bons exemplos. A literatura leiga e neuropsiquiátrica produziu de uns tempos para cá uma enormidade de textos referindo-se a experiências fora do corpo e experiências de quase morte. Nós neurologistas encontramos com freqüência, entre as manifestações psíquicas dos epilépticos, a chamada “noção de uma presença”, onde uma “entidade” parece acompanhar como testemunha o desenrolar da crise epiléptica.

COMENTÁRIOS

Não temos dúvida de que o dilema cérebro/mente é inesgotável, contraditório e, às vezes, irreconciliável. Ao propor discutir o tema em termos de corpo mental, sabemos da dificuldade de se introduzir uma idéia nova num contexto de tamanha complexidade. Lembramos, porém, de uma afirmação do evolucionista Stephen Jay Gould
13 que propôs a evolução pontual das espécies. “Novos fatos, coletados à moda antiga, sob a tutela de velhas teorias, raramente levam a qualquer revisão substancial do pensamento. Os fatos não “falam por si só”; são lidos à luz da teoria. O pensamento criativo, tanto na ciência quanto nas artes, é o motor para a mudança de opinião”

A discussão da mente parece se esgotar entre a Filosofia e a Ciência sem chegar a um fim. O “corpo mental” parece-me que tem o mérito de especificar um objeto de estudo mais adequado devido seu comportamento clínico e experimental.

Esperamos que estudos subseqüentes possam comprovar a validade da nossa proposta. Ainda precisamos aprofundar as características semiológicas sobre o corpo mental e identificarmos suas características anatômicas e funcionais fundamentais, já que ele pode ser avaliado clinicamente na histeria, testado experimentalmente na hipnose, reconhecido no membro fantasma, confirmado na narcolepsia e nas experiências fora do corpo, conforme exemplificamos.
REFERÊNCIAS:
1 – Russel B. História do pensamento ocidental: a aventura dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro - Ediouro 2001
2 – Macrone M. Eureka! Um livro sobre idéias – São Paulo Ed. Rótterdan 1997 pp. 121 e 122.
3 – Del Nero H.S. O sítio da mente: pensamento, emoção e vontade no cérebro humano. S. Paulo: Collegium Cognitio, 1977, p. 193.
4 - Tripicchio A, Tripicchio AC. Teorias da mente - Ribeirão Preto, S.P. Ed Tecmedd 2003 pp. 72 a 77
5 - Dejerine J. Sémiologie dês affections du Systeme nerveux 12 ed - Masson et Cie Éditeurs Paris 1914 pp. 540 a 549 e 927.
6 - Ferreira MV. Hipnose na prática clínica São Paulo Ed Atheneu 2003
7 - Halligan PW, Athwal, BS Oakley, DA, Franckowiak, RSJ. Imaging hipnotic paralysis: Implications for conversion hysteria. The Lancet, 2000; 355:986-987
8 - Halligan PW. New approaches to conversion hysteria. BMJ 2000; 320: 1488-1489 (3june)
9 - Marshall JC, Halligan PW, Fink GR, Wade DT, Frackwdak, RSJ. The functional anatomy of a hysterical paralysis. Cognition 1997; 64(1) pp. B1B8
10 - Jensen TS, Rasmussen P. Amputation. pp. 402-412. Textbook of pain Ed. Patrick D. Wall, Ronald Melzack (Churchill Livingstone) Londres 1984
11 - Melzack R, Israel R, Lacroix R, Schultz G. Phantom limbs in people with congenital limb deficiency or amputation in early childhood. Brain 1997; 120 (9) 1603-1620
12 - Melzack R. Phantom limbs. Sci Am April 1992; 266: 120-126
13 - Gould S. J. Darwin e os grandes enigmas da vida. Tradução de Maria Elizabeth Martinez 2a Ed. São Paulo - Martins Fontes 1999 p. 158
Agradecimento: A Kátia Gomes Facure Giaretta pela colaboração e apoio.

(Artigo publicado na "Revista de Ciências Médicas de Campinas", 14(1):97-101,jan/fev.,2005)

(*) Nubor Orlando Facure é neurocirurgião, professor aposentado da Unicamp, presidente e fundador do "Instituto do Cérebro", na cidade de Campinas-SP.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Evolução e Mudança

Allan Kardec, o magnífico Educador e Codificador da Doutrina Espírita, sob a égide de elevados amigos espirituais que lhe presidiram os trabalhos, nos alertava para alguns pontos fundamentais no desenvolvimento da Doutrina Espírita:

* a evolução é o único determinismo do Universo, e ela (a evolução) ocorrerá mesmo a nossa revelia, sem que nada possamos fazer. Tudo no Universo está sujeito a evolução, que gera aprendizado, o que por sua vez serve como alicerce para o processo evolutivo;
* as revelações que os espíritos nos trazem, são sempre compatíveis com a época em que ocorrem, pois os Espíritos Elevados respeitam nossas limitações, atuam dentro de nosso nível de conhecimento e consciência e não violam jamais o nosso livre arbítrio, nem nosso livre aprendizado. Seus ensinos são sempre para consolidar um nível de conhecimento que já está permeando a humanidade, porém sem induzir rumos ou "pular etapas" de aprendizado e desenvolvimento;
* as explicações dos espíritos sobre muitos pontos da Doutrina, estão muitas vezes limitadas pela ainda parca evolução intelectual da humanidade, pela pobreza de nosso vocabulário e pela inexistência de referenciais que lhes permitam exemplificar corretamente o ensino;
* assim como a Doutrina Espírita veio a seu tempo lançar luz e clarear muitos pontos obscuros do Evangelho, a evolução do conhecimento humano e das ciências possibilitará que vários pontos do Espiritismo sejam clareados, provados, discutidos e aprofundados;
* a razão, a análise lógica, o raciocínio coerente e a comprovação científica, segundo Kardec, deveriam ser suficientes para que a Doutrina viesse a agregar novos conhecimentos e alterar conceitos errôneos e incompletos de seu conhecimento e de seu ensino, devendo ser imediatamente incorporados a Filosofia, Ciência e Moral Espírita como parte de sua evolução;
* as obras da Codificação Espírita constituem-se no alicerce, na fundação, na base do Espiritismo, base esta sobre a qual se erguerá o Edifício da Doutrina. Esse edifício está sendo construído a partir da evolução do conhecimento e da ciência, junto com os novos ensinos trazidos pelos Espíritos Elevados. A Codificação não é a obra acabada, mas sim seus alicerces.

Trazemos estes pontos à reflexão, pois muitos Espíritas estão se esquecendo dessas colocações, e estão passando a considerar as Obras Básicas da Codificação como verdadeiros "Livros Sagrados", que contém a "verdade" da Doutrina, sendo "intocáveis" e "inquestionáveis" sobre tudo o que se refere ao Espiritismo.

Para essas pessoas, qualquer ponto que não possa ser rigorosamente "achado" nas Obras Básicas, é colocado sob suspeição e até sumariamente rejeitado, independente de toda a lógica, de toda a razão e de toda a comprovação científica que possa trazer embutido, atitude essa que contraria frontalmente o que Kardec colocava como normal e necessário para a própria sobrevivência da Doutrina.

É evidente que a época em que as Obras da Codificação foram escritas, o nível de conhecimento e as limitações da linguagem, impediam o aprofundamento de muitos pontos cruciais da Doutrina, e dificultam sobremaneira o entendimento da "verdade completa" sobre muitos tópicos e itens. Hoje, com novos conhecimentos científicos, culturais e uma linguagem mais avançada e flexível, certas explicações aparecem, lógicas, coerentes e até mesmo provadas, mas que são rejeitadas por "....irem contra Kardec....", por "...contrariarem Kardec....".

Mas o Codificador já previa isso. Não pretendia ele ser o "Dono da Verdade". Nem ele, nem os Espíritos Superiores. Sabiam que a "verdade" é relativa, apenas representa o conhecimento cultural e científico daquele momento específico. Por exemplo, até poucos anos atrás, os estados da matéria eram três (sólido, líquido e gasoso). Quantos de nós sabem quais são os estados da matéria hoje? Já são aceitos pelo menos seis, e alguns estudos começam a provar a existência de outros. Se admite hoje a possibilidade de 14 estados diferentes da matéria. Os cientistas da década passada estavam errados? Não, eles detinham apenas "parte da verdade". E os de hoje apenas detêm uma parte um pouco maior dessa "verdade".

Kardec era infalível? Essa pergunta dói. E como incomoda. Alguns Espíritas simplesmente se recusam a refletir sobre isso. Mas sabemos todos que a resposta é não. Kardec era falível, os médiuns que trabalharam com ele eram falíveis. Além disso, existia um conhecimento científico e cultural limitado na época. Os Espíritos Elevados estavam limitados em sua atuação e em seus ensinos por essa realidade.

As obras básicas são infalíveis? Claro que não, pelo mesmos motivos expostos no parágrafo anterior. Mas os Espíritos Superiores não revisaram todo o trabalho da Codificação? Não corrigiram todos os erros? Não completaram todas as lacunas? E a resposta é novamente não, pelo motivo que o próprio Kardec nos colocava, orientado pelos Espíritos Superiores: "...o livre arbítrio é absolutamente inviolável...".

Não podemos tornar as obras da Codificação, nem mesmo o Livro dos Espíritos, nem o Evangelho Segundo o Espiritismo, nem o Livro dos Médiuns, nenhum deles, na "Bíblia Sagrada" dos Espíritas. Kardec não queria isso e nos alertou sobre isso.

Temos que nos lembrar que muitos dos conceitos mais modernos da Doutrina Espírita, já assimilados e incorporados pela prática espírita, em âmbito até mundial, nos foram trazidos pela mediunidade de Francisco C. Xavier, psicografando André Luiz, cujos ensinos "revolucionaram" a Doutrina Espírita. No que se refere ao perispírito, ao passe, as energias e a muitos outro itens, grande parte do ensino de André Luiz não é encontrado nas Obras Básicas. Mas os conhecimentos e ensinos trazidos estão certos. E são aceitos pela maioria das Casas Espíritas, paradoxalmente, mesmo sem muita análise e reflexão.

Hoje temos novos autores, Pesquisadores de Nível Universitário, Mestres , Doutores e Pós-Doutores, Filósofos, Médicos, Físicos, Cientistas enfim, que vêm trazendo novos e profundos conhecimentos para o Espiritismo. Simplesmente rejeitar esses novos conhecimentos científicos e culturais, sob a alegação de que "...não estão em Kardec...", ou porque "...vai contra o que colocou Kardec..." é no mínimo negar tudo o que disse e pensou o nosso Mestre Lionês.

Temos ainda que nos lembrar que hoje, não existe quem possa fazer o trabalho que Kardec fazia, de compilar, analisar e sistematizar todo o conhecimento espírita do mundo. Não temos e não teremos. As Federações não podem cumprir esse papel, pois não têm caráter normativo (e nem devem ter mesmo), estando sujeitas, como qualquer grupamento humano, a "correntes ideológicas" (inclusive não kardecistas) e as inefáveis paixões humanas, que as inviabilizam para tal papel. Cabe aos Espíritas abrirem mente e coração, inteligência e razão, análise e reflexão para o estudo de cada uma das novas obras, das novas proposições, dos novos paradigmas propostos, passando-as pelo "crivo" a que se referia Allan Kardec, analisando as provas, as evidências, a lógica e a razão e concluindo a respeito.

O que não se pode é simplesmente "negar", por não se achar que não está "de acordo" com as obras básicas. Não se pode tentar defender posições dogmáticas e excludentes, porque "...não está em Kardec...". Fazer isso é tomar a mesma atitude que levou a estagnação e fracasso da Religiões Tradicionais.

Negar a evolução, negar o avanço, negar as mudanças, negar a agregação de novos conhecimentos é, por si só, ir contra o que nos trouxe e deixou Allan Kardec. Essa atitude é a que realmente não encontra amparo nas Obras Básicas.

Para encerrar, fica aqui a recomendação para um estudo detalhado e minucioso da Introdução e dos Prolegômenos do Livro dos Espíritos, que infelizmente muitos "pulam" e se descuidam.

Evolução e Mudança andam juntas. Graças a Deus na própria Doutrina Espírita.

Carlos Augusto Parchen

FONTE: http://cienciafilosofiareligiao.blogspot.com

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