domingo, 14 de fevereiro de 2010

Nós somos deuses?

Há alguns anos, numa palestra sobre doutrina espírita, ouvi o orador afirmar que “nós somos deuses”, suportando esta afirmação numa fonte indiscutível, Jesus, conforme o Evangelho de João, capítulo 10. Mais tarde, li esta mesma afirmação no livro “Devassando o invisível” de Yvonne Pereira.
Ora esta frase não me soava como como um humilde reconhecimento da nossa filiação divina mas antes como uma espécie de orgulhoso reconhecimento de que seríamos réplicas de Deus. Por outro lado, não me lembrava desta afirmação feita por Jesus, pelo menos com este sentido. Restava, em vez de permanecer na dúvida, fazer o que era óbvio e tentar estudar o assunto.
Em causa está uma frase de Jesus. Mas Jesus não só reporta essa frase ao Antigo Testamento, ao Livro dos Salmos e, em concreto, ao Salmo de Asaf, como se demarca dela ao afirmar «Não sois vós que dizeis?». De facto o que Jesus faz é lembrar aos judeus, que o confrontavam, as palavras da antiga lei que designava deuses aqueles a quem se dirigiu a palavra de Deus e, se assim era, como ousavam eles considerá-lo blasfemo por se afirmar “Filho de Deus”. O resultado do estudo do texto aqui fica e cada um que tire as suas próprias conclusões.
Os textos seguintes baseiam-se na 3ª edição de 1968 da Bíblia Sagrada da Difusora Bíblica e na edição de 2001 da Bíblia Sagrada, em CD-ROM, da Difusora Bíblica, tradução dos Franciscanos Capuchinhos, texto da 3ª edição revista sob a direcção de Herculano Alves e o comentário ao Salmo de Asaf foi retirado do sítio Estudos da Bíblia conforme referência anexa à transcrição.

Análise do contexto do versículo 34 do capítulo 10
do Evangelho de João

O nome de Livro dos Salmos, ou simplesmente Salmos, designa uma colecção de poemas ou cânticos religiosos. O nome deriva da palavra grega “Psalmoi” e esta é já utilizada na antiga tradução grega, chamada dos Setenta, para traduzir o termo hebraico “mizmorôt”, (cânticos). Este parece ter sido o seu nome hebraico mais antigo. No entanto, já nos textos de Qumrân e em alguns autores cristãos antigos aparece o nome que actualmente lhe é dado na Bíblia Hebraica: “Sepher Tehillim”, “Livro dos louvores”.
Embora as tradições hebraica e cristã atribuam a David a origem dos Salmos estes poemas religiosos foram compostos ao longo de muitos séculos e alguns deles poderão ter sido compostos não muito antes do tempo do Novo Testamento.
Estes hinos religiosos são herdeiros da poesia religiosa da tradição cananaica que os hebreus, em boa parte, aproveitaram. Houve certamente épocas privilegiadas na produção destes Salmos; a de David poderá ter sido uma delas.
O Livro dos Salmos engloba, na actual Bíblia Hebraica, um conjunto de 150 cânticos. Mas, na história antiga do texto bíblico, as numerações dos Salmos variaram bastante, sem que se modificasse o seu conteúdo literário. Na tradução grega dos Setenta, de onde transitou para as traduções latinas dela dependentes e ainda se encontra em antigas traduções portuguesas, os Salmos que se encontram entre o 9 e o 147 levam um número a menos.

Salmo 82 (81) REPREENSÃO AOS MAUS JUÍZES

É um salmo de súplica que termina por um pedido a Deus e está assente sobre uma imagem na qual Deus preside ao julgamento do universo, chefiando uma corte divina, segundo o imaginário das culturas de Canaã.
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1Salmo de Asaf.
Deus preside à assembleia divina,
profere as suas sentenças no meio dos deuses: (a)
2«Até quando julgareis injustamente
e favorecereis a causa dos ímpios?
3Defendei o oprimido e o órfão;
fazei justiça ao humilde e ao pobre.
4Libertai o oprimido e o necessitado,
e defendei-os das mãos dos pecadores.»
5Não, eles não percebem nem compreendem;
caminham nas trevas; abalam-se os fundamentos da terra.
6Eu disse: «Vós sois deuses,
todos vós sois filhos do Altíssimo.
7Mas morrereis como qualquer mortal;
caireis como qualquer príncipe.»
8Levanta-te, ó Deus, para julgar a terra,
porque todas as nações te pertencem.
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(a) Os deuses, aqui referidos, são os juízes, os que tinham a seu cargo o governo e a administração da justiça. São chamados deuses porque exercem uma função que é, primariamente, de Deus.

Evangelho de João 10, 22-39

A festa da Dedicação: Jesus declara-se Messias – 22Celebrava-se, então, em Jerusalém, a festa da Dedicação do templo. Era Inverno. 23e Jesus passeava pelo templo, debaixo do pórtico de Salomão. 24Rodearam-no, então, os judeus e começaram a perguntar-lhe: «Até quando nos deixarás na incerteza? Se és o Messias, di-lo claramente.» 25Jesus respondeu-lhes: «Já vo-lo disse, mas não credes. As obras que Eu faço em nome de meu Pai, essas dão testemunho a meu favor; 26mas vós não credes, porque não sois das minhas ovelhas. 27As minhas ovelhas escutam a minha voz: Eu conheço-as e elas seguem-me. 28Dou-lhes a vida eterna, e nem elas hão-de perecer jamais, nem ninguém as arrancará da minha mão. 29O que o meu Pai me deu vale mais que tudo e ninguém o pode arrancar da mão do Pai. 30Eu e o Pai somos Um.» 31Então, os judeus voltaram a pegar em pedras para o apedrejarem. 32Jesus replicou-lhes: «Mostrei-vos muitas obras boas da parte do Pai; por qual dessas obras me quereis apedrejar?» 33Responderam-lhe os judeus: «Não te queremos apedrejar por qualquer obra boa, mas por uma blasfémia: é que Tu, sendo um homem, a ti próprio te fazes Deus.» 34Jesus respondeu-lhes: «Não está escrito na vossa Lei: ‘Eu disse: vós sois deuses’? 35Se ela chamou deuses àqueles a quem se dirigiu a palavra de Deus - e a Escritura não se pode pôr em dúvida - 36a mim, a quem o Pai consagrou e enviou ao mundo, como é que dizeis: ‘Tu blasfemas’, por Eu ter dito: ‘Sou Filho de Deus’? 37Se não faço as obras do meu Pai, não acrediteis em mim; 38mas se as faço, embora não queirais acreditar em mim, acreditai nas obras, e assim vireis a saber e ficareis a compreender que o Pai está em mim e Eu no Pai.» 39Por isso procuravam de novo prendê-lo, mas Ele escapou-se-lhes das mãos.»

Nota sobre o Salmo 82 (81)

«Salmo 82 O Deus Justo Julga os Juízes
1 Deus estabelece o seu julgamento no meio dos juízes. A palavra hebraica “elohim” é traduzida frequentemente “Deus” ou “deuses”. A mesma palavra, porém, é usada, às vezes, para identificar criaturas que o serviam ou o representavam, como “juízes” (veja Êxodo 21:6; 22:8,9). Parece ser o significado neste Salmo. Compare esta mensagem com o Salmo 58
2-4 Ele repreende os juízes por sua injustiça. Era dever deles proteger as vítimas inocentes e castigar os malfeitores. Esses faziam ao contrário. Vários dos profetas condenavam os líderes corruptos de Israel e Judá, repetindo mensagens como essa (veja Isaías 1:23; Jeremias 5:28) 5 Os juízes que não governavam com rectidão se mostraram instáveis, ao invés de promoverem a estabilidade do povo (veja Provérbios 29:4) 6-7 Mesmo sendo homens escolhidos para representar o justo Juiz, eram apenas mortais. Jesus citou o versículo 6 para mostrar a injustiça dos judeus que queriam apedrejá-lo (João 10:34) 8 O Salmista termina com um pedido a Deus, o verdadeiro Juiz das nações» in Estudos Bíblicos http://www.estudosdabiblia.net/b08_15.htm

Em conclusão

Esta breve resenha pretende apenas chamar a atenção para o que me parece ser uma interpretação abusiva do texto em análise que conduz à inferência ou extrapolação de que “Nós somos deuses”. Somos, sem dúvida, centelha divina pois sendo filhos de Deus temos, em nós, essa centelha. Daí a sermos deuses, vai o passo que nos separa dos tempos do Antigo Testamento em que essa designação se aplicava a todos aqueles que ouviam, e seguiam, a palavra de Deus.
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