domingo, 27 de junho de 2010

Chico Xavier e a Bhagavad Gita: a disciplina do coração

Vi outro dia num site Espírita a seguinte recomendação: “você deve seguir sempre o seu coração”. O site também sugeria que o conceito de espiritualidade iria, no futuro, ocupar o espaço hoje reservado à ‘religião’ do homem dividido: “Um dia os homens não terão mais rótulos religiosos. Ninguém se dirá católico, protestante, hindu, (…) ou qualquer outra coisa, porque a única identificação que trará consigo será o amor.”. Isto me fez pensar na obra de Chico Xavier e como ela se relaciona com a antiga disciplina do coração, fundada no amor, conforme a exposição de Krishna à Arjuna na Bhagavad Gita. Os romances de Chico Xavier trazem ao ocidente esse aprofundamento sobre a disciplina introduzida por Cristo. A sua obra retrata a relação do ser humano com a divindade que reside no coração e a sua lei, mantendo-se fiel à simplicidade do Sermão de Cristo e, ao mesmo tempo, tratando de alguns detalhes mais técnicos que só aparecem na Bhagavad Gita.

Chico Xavier escreve de forma livre. Traz para dentro do corpo doutrinário do Espiritismo esta compreensão de movimento evolutivo, que torna o Espírita menos dogmático, quando comparado aos membros de outras religiões ocidentais. O Espírita tem por princípio não julgar as diferentes manifestações filosóficas e religiosas. Costuma dar exemplo de compreensão e tolerância. Tem consciência de que não é a religião, mas o esforço em sublimar as más inclinações que conduz à salvação. É o Espírita quem entende o Sermão da Montanha de Jesus como esse convite para vencer a si mesmo.

Desse modo, a doutrina Espírita firma-se no Brasil resgatando o antigo entendimento do pensamento oriental de que tudo, desde a superestrutura dos astros à infra-estrutura subatômica, está mergulhado na substância viva da Mente de Deus [“Fluido Cósmico Universal”, LE, Q. 26]. No livro Nos Domínios da mediunidade, que discutimos nas próximas seções, Chico Xavier vale-se do Espírito Albério para tratar deste assunto em diversas passagens, como a que se segue: “Filhos do Criador, d’Ele herdamos a faculdade de criar e desenvolver, nutrir e transformar” (p. 16). Pode-se argumentar que o Espiritismo surge para aprofundar a experiência religiosa ocidental [LE, Q. 1010], possibilitando a associação do Cristo e do Criador na figura do ser que a literatura recente designa como o ‘Cristo planetário’. Nas escrituras sagradas da Índia, o termo sânscrito que designa a este ser é ‘Ishvara’, que representa os aspectos da divindade relacionados com as funções de criação, desenvolvimento e destruição (ou re-assimilação) do universo [LE, Q. 68-70].

Além disto, ao reconhecer o antigo conceito de karma, oriundo da literatura sânscrita da Índia, a literatura Espírita esbarra também no conceito designado pelo seu termo correlato, dharma. Quando Chico Xavier afirma em vários momentos de sua obra que cada alma se alinha em seu mundo ‘kármico’ em conformidade com o seu ‘hálito’ mental, o faz em consonância com o que antes já haviam feito os indianos, ou seja, baseando-se em certas ‘leis de equilíbrio’, desconhecidas, até então, do pensamento da tradição judaico-cristã, embora sugeridas pelo próprio Cristo. Tais leis, na Índia, designam-se pelo nome geral de ‘dharma’. De acordo com a literatura dos Vedas e Upanishades, karma e dharma são conceitos interdependentes, de modo que o conhecimento de um implica no conhecimento do outro. Pode-se dizer, portanto, que por intermédio de André Luiz, o ocidente tem acesso ao antigo conceito que o oriente designa pelo termo ‘dharma’, recuperando e atualizando o seu sentido, em parte desgastado pelo tempo, em função do mau uso.

Desde os primórdios da cultura védica os conceitos de karma e dharma representam os fundamentos onde se assentam os sistemas que buscam explicar como os seres viventes se desenvolvem dentro do campo material. A literatura sânscrita refere-se à esta adequação da ação humana (karma) aos princípios holísticos que regem o universo (dharma) como ‘samsara vyavasya’, literalmente, ‘o modo de funcionar no mundo’. O texto de André Luiz sugere esta mesma relação já em seu início, quando o Espírito Albério ensina: “agimos e reagimos uns sobre os outros, através da energia mental em que nos renovamos constantemente, criando, alimentando e destruindo formas e situações, paisagens e coisas, na estruturação dos nossos destinos.” (p. 16-17).

Quando Herculano Pires introduz na doutrina Espírita o termo sânscrito ‘karma’, que sequer fazia parte do vocabulário de Kardec, possibilita um melhor entendimento das leis deste funcionamento no mundo (leis de ação e reação) e inaugura um novo período dentro do espiritismo. A partir daí a teoria reencarnacionista e as práticas de mediunidade foram impondo-se de tal modo que, nos dias de hoje, ninguém de bom-senso diria que um homem como Chico Xavier foi um herege, ou que se desviou do Evangelho.

O fato é que nunca nos foi muito estranha a idéia de que somos todos dotados de certa mediunidade natural, por onde recebemos as influências que nos estimulam em nossas experiências cotidianas. As questões em torno da mediunidade já estavam presentes no Brasil antes mesmo da chegada da doutrina Espírita. E mesmo a definição mais restrita, conforme proposta por Kardec, de que médium é todo aquele que sente a presença ostensiva dos Espíritos, servindo de ponte entre estes dois mundos, não é muito diferente do que por aqui já se praticava. Desse modo, o kardecismo que fora impensável para a conservadora Europa, viabiliza-se no Brasil de forma bastante natural, tendo como base de sustentação as obras de espíritas como Chico Xavier.

Não há hierarquia dentro do Movimento Espírita Brasileiro. Chico Xavier não representa uma autoritária figura central, pelo contrário, representa o resgate da proposta original do Sermão da Montanha, onde a fonte de autoridade, do mesmo modo que na Bhagavad Gita, emana do coração. Desse modo, ao aceitar o Universo como a exteriorização do Pensamento Divino [LE, Q. 38 e A Gênese, Cap. VI], o Espírita possibilita o estabelecimento de um rico diálogo filosófico com o oriente [ver, por exemplo, O que é o Espiritismo?, de Kardec], pois considera Paraíso e Inferno [CI, Cap.III e IV], Adão e Eva [LE, Q. 50-51 e 59] e outros temas bíblicos como meras metáforas.

Nem sempre, entretanto, é simples identificar o que emana do coração. Se Gandhi, por exemplo, afirma ter realizado tudo o que realizou inspirado no ensinamento de Krishna na Gita para seguir a voz do coração, conta a história que o assassino de Gandhi, também dizia estar seguindo o seu coração. Daí, em suma, a importância da obra de Chico Xavier, pois sinaliza para esta distinção.

Continua…

*Rubens Turci é doutor em Filosofia (UFRJ) e em Estudos Religiosos (McMaster University) e pesquisador do Laboratório de Estudos da Índia e Ásia do Sul (LEIAS) da UFRJ.

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